“Rosana viajou com mais dez jovens, quase todos moradores de Acari. No dia 26 de julho de 1990, por volta das nove da noite, eles foram retirados do sítio em que estavam e até hoje estão desaparecidos. O desaparecimento – porque pobre desaparece, não é sequestrado – foi registrado na delegacia local (...). Foi instalado um inquérito policial para investigar policiais do 9º Batalhão. No dia 1º de agosto foi encontrada uma kombi, de propriedade da dona do sítio. A kombi, periciada numa delegacia pertinho de Suruí, apresentava vestígios de sangue. Mas, por falta de acesso a exames de DNA, nunca saberemos se era dos nossos filhos. Quer dizer, perdemos uma prova que provavelmente constataria as mortes.”(Trecho do depoimento de Marilene Lima de Souza, mãe de Rosana, assassinada na chacina de Acari, aos 19 anos, extraído do livro Auto de resistência – relatos de familiares de vítimas da violência armada, p.93).
Em 14 de julho de 2013, por volta das 19h, PMs da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Rocinha entraram no Bar do Júlio, na parte alta da favela, e abordaram Amarildo Dias de Souza, com 43 anos à época. Por ordem do então comandante da UPP, o major Edson Raimundo dos Santos, ele foi colocado dentro de uma viatura e levado para a sede da unidade. Até hoje, passados dez anos, Amarildo nunca mais foi visto. Seu filho, Anderson Gomes Dias de Souza, de 31 anos, em entrevista ao jornal o Globo, declarou: “Eu não tive a chance de enterrar meu pai. Nunca pude me despedir e nunca consegui explicar para minha filha, de 3 anos, o que houve com o avô dela. Só vou acreditar na Justiça quando a gente encontrar os restos mortais.”
Seis em cada dez inquéritos policiais sobre mortes de crianças e adolescentes no Estado do Rio de Janeiro aguardam conclusão, alguns há mais de duas décadas. Do total de 15.614 casos registrados desde 1999, há hoje 9.428 à espera de solução. Em média, as investigações que ainda estão em aberto se arrastam por 9 anos e 8 meses. São os dados obtidos pelo II Relatório sobre inquéritos de homicídio praticados contra crianças e adolescentes, produzido pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, lançado em julho de 2023, o qual indicou um alto índice de letalidade policial e mortes provocadas por projétil de arma de fogo.
Sobre os recortes transcritos acima, é correto afirmar que:
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A todos são exemplos do que a doutrina chama de “cifra oculta” ou “cifra negra” da criminalidade, pois embora as mortes sejam conhecidas pelos familiares das vítimas, não chegam a integrar a criminalidade registrada pelas agências estatais;
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B todos os exemplos podem ser interpretados pela necropolítica e pela concepção do estado de exceção, os quais legitimam a escolha de quem vai viver ou quem se vai deixar morrer;
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C todos são exemplos de hard cases ou casos difíceis, denominado por R. Dworkin em que a ausência de suspeitos torna incessante a busca por justiça;
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D em todos os casos pode-se observar o fenômeno da “projeção de agressividade”, estudado por E. Naegeli, em que as vítimas funcionam como bode expiatório para a violência ínsita aos agentes de polícia;
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E todos são exemplos do “efeito bumerangue” descritos por M. Foucault, segundo o qual a violência vivida por agentes de polícia retorna para a população que deveria ser por ela protegida.