De acordo com o caput do art. 13 do CC, “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes". Dispõe o parágrafo único que “o ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial". Utilizava-se este dispositivo para a correção ou adequação de sexo do transexual.
O Conselho Federal de Medicina não considera ilícita a realização de cirurgias que visam a mudança do sexo, mas o transexualismo sempre foi reconhecido pelas entidades médicas como uma doença, decorrente de um “desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio" (Resolução 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina).
Acontece que, nos últimos anos, foi ocorrendo uma despatologização da situação da pessoa trans na nossa jurisprudência, não sendo mais possível utilizar a expressão transexualismo, justamente por indicar a existência de uma patologia. Fala-se, agora, em transexualidade.
Fazendo uma breve retrospectiva, no ano de 2017, o STJ admitiu a alteração do sexo no registro civil, sem a necessidade de prévia realização cirurgia (Resp 1.626.739/RS). Um dos argumentos utilizados foi o de que existe o direito ao gênero, com base no sexo psicológico da pessoa humana. aplicado o teor do Enunciado nº 42, aprovado na I Jornada de Direito da Saúde, do CJF: “Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil".
No ano de 2018, foram proferidas duas outras importantes decisões, no STF, à respeito da despatologização da transexualidade. A primeira, em repercussão geral, foi o julgamento do ADI 4275/DF, em que se passou a admitir a alteração do nome civil da pessoa trans ou transgênero no Cartório de Registro Civil, sem a necessidade de autorização judicial, realização de laudo médico demonstrando a patologia ou cirurgia prévia:
“Reconheceu aos transgêneros, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à alteração de prenome e gênero diretamente no registro civil (...). Considerou desnecessário qualquer requisito atinente à maioridade, ou outros que limitem a adequada e integral proteção da identidade de gênero autopercebida. Além disso, independentemente da natureza dos procedimentos para a mudança de nome, asseverou que a exigência da via jurisdicional constitui limitante incompatível com essa proteção. Ressaltou que os pedidos podem estar baseados unicamente no consentimento livre e informado pelo solicitante, sem a obrigatoriedade de comprovar requisitos, tais como certificações médicas ou psicológicas, ou outros que possam resultar irrazoáveis ou patologizantes" (STF, ADI 4275/DF, Rel. orig. Min. Marco Aurélio, Red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, j. 28.02 e 1.º.03.2018).
A segunda foi o julgamento do Recurso Extraordinário 670.422, tendo sido fixadas as seguintes teses, por novamente sem unanimidade: “1. O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil. Não se exige, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial quanto pela via administrativa. 2. Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero'. 3. Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão deinteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial. 4. Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício, ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros dos órgãos públicos ou privados, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos" (STF, RE 670422/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 15.08.2018, publicado no seu Informativo n. 911).