As pessoas jurídicas têm, dentre seus princípios fundamentais, aquele que proclama sua autonomia patrimonial. Isso significa que os bens das pessoas naturais que a compõem, em princípio, não se confundem com o patrimônio da pessoa jurídica. Tal princípio, porém, não é absoluto, cedendo espaço quando ficar evidenciado que a pessoa jurídica foi deturpada em suas finalidades, abrigando fraudes e abusos.
Nessa toada, a desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity) é mecanismo por meio do qual se afasta a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, visando atingir e vincular bens particulares dos sócios ou administradores à satisfação de débitos da sociedade.
A desconsideração da personalidade jurídica visa responsabilizar diretamente os administradores ou sócios quando estes utilizam a pessoa jurídica, com a prática de atos aparentemente lícitos, para manipulação fraudulenta ou abusiva do princípio da autonomia patrimonial. Como a fraude se encontra oculta, atrás da pessoa jurídica, justifica-se a desconsideração da personalidade jurídica para se operar a mudança da imputação, isto é, da sociedade para os sócios ou administradores responsáveis pelo ato fraudulento. Por isso, é comum, na doutrina, a expressão “levantar o véu da pessoa jurídica”.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi o primeiro diploma a consagrar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, seguido pela Lei nº 8.884/1994 (dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, posteriormente modificada pela Lei nº 12.259/2011), Lei nº 9.605/1998 (Lei de Proteção ao Meio Ambiente) e o Código Civil (CC) de 2002.
Teorias sobre desconsideração da personalidade jurídica
De acordo com a doutrina, destacam-se duas teorias acerca da desconsideração da personalidade jurídica: a) Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica; e b) Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Muito importante!
Pela Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica, deve haver desconsideração da personalidade jurídica quando restar provado o desvio da finalidade (concepção subjetiva) ou a confusão patrimonial (concepção objetiva). Pela Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, deve haver desconsideração da personalidade jurídica quando restar provada a insolvência da pessoa jurídica. O risco empresarial deve ser suportado pelos sócios e não por aquele que contratou com a pessoa jurídica.
O CDC adotou a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, sendo suficiente a prova da insolvência da pessoa jurídica, independentemente da ocorrência do desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. O CC, por sua vez, adotou a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica, já é necessário comprovar o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.
Desconsideração da personalidade jurídica no CDC
De acordo com art. 28 do CDC, “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
O § 5º do art. 28, ampliando em demasia as possibilidades da desconsideração e adotando a chamada Teoria Menor da Desconsideração, asseverou que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
Muito importante!
Assim, na sistemática do CDC, a personalidade jurídica da sociedade será desconsiderada nas seguintes hipóteses:
- abuso de direito;
- excesso de poder;
- infração da lei, fato ou ato ilícito;
- violação dos estatutos ou contrato social;
- falência;
- estado de insolvência;
- encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração;
- sempre que a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Aliás, é também possível, por meio de interpretação teleológica, a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador (STJ, REsp. nº 948.117/MS). Por meio do diálogo das fontes, também se tem como possível a aplicação do § 2º do art. 133 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, que prevê expressamente a possibilidade de desconsideração inversa às relações de consumo.
Deve-se levar em conta que a desconsideração da personalidade jurídica não implica extinção da personalidade jurídica. Com efeito, a desconsideração da personalidade jurídica é pontual e restrita ao caso concreto em que foi requerida.
Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica
Na sistemática do CDC, devem-se destacar os seguintes pontos:
- O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica de ofício, a requerimento do Ministério Público (MP) ou da parte interessada.
- A desconsideração da personalidade jurídica pode ser decretada em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença ou de execução de título executivo extrajudicial.
- O CPC disciplinou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos arts. 133 a 137, em que se garantem o contraditório e ampla defesa aos sócios ou administradores, cujos bens podem ser afetados pela desconsideração. A instauração do incidente suspende o processo principal. A decisão que resolve o incidente tem natureza interlocutória e, em face dela, cabe agravo de instrumento. Acolhido o pedido de desconsideração de personalidade jurídica, a alienação ou a oneração de bens, havida a fraude e execução, será ineficaz em relação ao requerente. Não se instaura o incidente se ele for requisitado na petição inicial.
Responsabilidade dos grupos societários
Os parágrafos do art. 28 do CDC trazem algumas regras importantes quanto à responsabilidade de sociedades por obrigações consumeristas, quais sejam:
- sociedades integrantes de grupos societários e sociedades controladas respondem subsidiariamente;
- sociedades consorciadas possuem responsabilidade solidária; e
- sociedades coligadas somente respondem por culpa.