A mula sem cabeça é um dos personagens das lendas do folclore brasileiro que se propagou em várias regiões do Brasil através da contação de estórias. Ou seja, a arte de criar eventos e estimular a imaginação através das palavras.
Nas narrativas lendárias, a descrição do personagem folclórico é de uma mulinha que tem ferraduras de aço em seus cascos. Em algumas estórias aparece pintada de marrom e em outras de preto.
A principal característica que torna a mula sem cabeça um personagem muito estranho é o que tem no lugar da sua cabeça – uma tocha constante de fogo ardente.
O mito lendário é narrado conforme o regionalismo de cada localidade do país. Até mesmo o nome do personagem sofre variações em decorrência disso. Por isso, é possível encontrar as denominações de “Mulher de Padre”, “Mula de Padre” ou “Mula Preta”, além de outras, para se referir ao personagem.
Possivelmente, as lendas da mula sem cabeça incorporaram à cultura popular brasileira através dos colonizadores portugueses e espanhóis quando desembarcaram na América.
A mula sem cabeça e o dogma católico
Uma das estórias da mula sem cabeça tem razão religiosa. Assim, segundo a lenda, as moças belas e jovens que frequentavam as missas da Igreja Católica pleiteavam um casamento e não poderiam se apaixonar pelos padres.
A proibição do matrimônio aos integrantes do clero levou à criação de estórias que amedrontassem as mulheres
.
Inclusive, era regra que as fiéis e beatas olhassem para os padres com “olhos puros”, ou seja, como homens santos enviados por Deus com a missão de abençoar e pregar o evangelho divino.
Em consequência disso, toda mulher que cometesse o pecado – chamado biblicamente de fornicação – com um padre se tornaria uma mula sem cabeça.
A maldição
A mula sem cabeça foi exatamente a transformação da desobediência de uma das mulheres católicas, que recebeu à maldição divina por suas heresias.
Lodo depois que cometeu o pecado, a mulher ficou com uma forma de mula, com muito fogo no lugar da cabeça e saiu disparada com muitos galopes pelas matas dando altas relinchadas.
No matagal a mula destruiu muitas plantações com o fogo que emite do seu corpo. Queimou muitas árvore, pisou em diversos bichos da floresta e caiu do alto de pirambeiras.
Depois de uma noite inteira perambulado pela mata a fora, o animal retornou ao corpo da mulher. E quando despertou para sua realidade, percebeu que estava com muitos machucados e escoriações no corpo inteiro.
Diante disso, ficou estabelecido como dogma católico que todas as mulheres pecadoras teriam o mesmo castigo.
A quebra da maldição da mula sem cabeça
Ainda segundo a lenda, existem duas maneiras da maldição ser quebrada e o personagem torna-se uma mulher para sempre.
A primeira maneira é se uma pessoa conseguir retirar o freio de ferro que fica pendurado no pescoço da mula.
Já a segunda é fazer com que qualquer parte do corpo do animal jorre sangue, ainda que seja uma gota. A pessoa pode cometer o sangramento com qualquer instrumento, a exemplo de um pedaço de madeira ou de uma agulha.
Destas maneiras, o guerreiro ou a guerreira que conseguir tal proeza livra a mulher da maldição. Assim ela desperta chorosa, completamente arrependida de seus pecados e passa a seguir à risca todas as leis e ensinamentos da Igreja Católica
.
Entretanto, a mulher somente permanece livre das transformações maléficas enquanto seu libertador ou libertadora viver na mesma região que ela.
Caso o guerreiro ou a guerreira que a libertou da maldição se mude para outra localidade, a mulher torna a ser uma mula sem cabeça.
A mula sem cabeça na literatura infantil
Das estórias contadas de geração para geração, a mula sem cabeça ganhou as páginas dos livros de literatura infantil de um dos autores mais renomados do país.
O escritor brasileiro Monteiro Lobato escreveu estórias impressionantes com os personagens folclóricos, como o Saci Pererê, Curupira e o Boitatá. E o personagem lendário monstruoso não ficou de fora.
No livro “O Saci” o escritor escreveu várias estorinhas engraçadas e criativas. No capítulo XX, já no início da narração, retrata o susto que Pedrinho teve só de ouvir os galopes da mula se aproximando.
E ainda é descrito que Pedrinho ouvia muito falar do personagem. Algumas estórias eram contadas como se fossem verdade, mas Dona Benta em nada acreditava.
Embora tivesse medo do “mostro”, Pedrinho queria muito conhecê-lo. Todavia, o saci o repeliu e expressou “(a mula) tem o dom de transtornar a razão de todos que a vêem”, evidenciando assim toda sua negatividade em relação ao personagem.
Leia abaixo o trecho inicial do livro e divirta-se com a construção narrativa de Monteiro Lobato:
“Pedrinho estremeceu. Nenhum duende das florestas o
apavorava mais que esse estranho e incompreensível
monstro, a mula-sem-cabeça que vomita fogo pelas ventas.
Muitas histórias a seu respeito tinha ouvido aos caboclos do
sertão e aos negros velhos, embora Dona Benta vivesse
dizendo, que tudo não passava de crendice.
A galopada aproximava-se; já se ouvia o estalar dos
arbustos que em seu desenfreado galopar a mula-sem-cabeça
vinha quebrando. Súbito, parou.
— Vai mudar de rumo! — murmurou o saci com cara
mais alegre.
E de fato foi assim. A mula retomou a galopada, mas em
outra direção, e embora passasse por perto não chegou ao
alcance dos olhos do menino.
— Que pena! — exclamou ele. — Tanta vontade que eu
tinha de conhecer esse monstro…
— Que pena? — repetiu o saci. — Que felicidade, deve
você dizer! A mula-sem-cabeça é o mais sinistro duende que
há no mundo; tem o dom de transtornar a razão de todos que
a vêem. Por isso é que, tive medo — não por mim, mas por
você…” [grifos nossos]