A LBI, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, altera de modo substancial a disciplina jurídica brasileira acerca do tema, principalmente no que diz respeito ao direito civil.
Tendo como inspiração a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o Estatuto da Pessoa com Deficiência exibe inovações jurídicas condizentes com o tratado internacional, que, conforme já vimos, absorvido pelo ordenamento interno brasileiro, tem status de emenda constitucional.
Inicialmente, é importante salientar que diversos dispositivos do Código Civil foram alterados pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência para fins de adequação entre as leis. São eles: arts. 3º, 4º, 228, 1.518, 1.548, 1.550, 1.557, entre outros. As alterações referidas poderão ser cobradas numa prova em direito civil ou então em questionamentos sobre a Lei nº 13.146/2015.
Sendo assim, o Estatuto dissocia o impedimento da incapacidade para os atos da vida civil, evidenciando que deficiência não é sinônimo de incapacidade.
Observe as relevantes alterações feitas no Código Civil pela LBI:
Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
O estatuto revogou os incisos II e III do art. 3º, que incluíam como absolutamente incapazes as pessoas com deficiência sem discernimento e as que não podiam exprimir vontade.
O estatuto alterou os incisos II e III do art. 4º, suprimindo os que, por deficiência mental, tenham discernimento reduzido e os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo.
Nesse sentido, vejamos as disposições da Convenção de Nova Iorque quanto a essa questão.
Preâmbulo: n) Reconhecendo a importância, para as pessoas com deficiência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade para fazer as próprias escolhas, (...)
Art. 12. Item 1. Os Estados-Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei.
2. Os Estados-Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
3. Os Estados-Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.
4. Os Estados-Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. (Grifos nossos.)
Com isso, a Convenção de Nova Iorque estabeleceu um mandamento para que os Estados-partes (signatários) consagrassem a diferença entre “apresentar deficiência” e “apresentar incapacidade”.
Além disso, a LBI revela dois modelos de abordagem da deficiência:
a) Deficiência sem curatela (possibilidade de autodeterminação).
b) Deficiência com curatela (destinada aos relativamente incapazes – os que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade).
Assim sendo, a LBI manteve a figura da curatela e reconheceu, em seu art. 84, § 1º, a possibilidade de as pessoas com deficiência submeterem-se à curadoria: “quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”. Ainda, nos termos do § 3º do mesmo dispositivo, a curatela deve servir como medida protetiva extraordinária e proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso concreto, devendo ser aplicada pelo menor prazo possível.
Nesse contexto, surge um questionamento: é possível a curadoria de pessoa capaz? Sim, revela-se uma nova era de conquista de direitos e emancipação dessa camada da população extremamente vulnerável. Exige, assim, uma redefinição de papéis e conceitos antigos. Eventual nova definição de incapacidade (somente para esses sujeitos de direito) causaria discriminação, o que a lei expressamente veda. Assim, o estatuto inova nessa matéria. Admite, por força do art. 84, § 1º, a interdição de pessoa capaz: “quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”.
A curatela de pessoa capaz é novidade inusitada na história do Direito brasileiro. A orientação do estatuto é clara, ainda que, com a curatela, não temos uma pessoa incapaz.
Dessa forma, com a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, temos uma nova categoria de pessoas capazes: os capazes sob curatela.
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.
§ 2º É facultada à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada [inovação].
§ 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
§ 4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
Ainda nesse cenário, revelou-se também como fundamental contribuição a introdução do mecanismo de tomada de decisão apoiada, prevista no § 2º do art. 84 da LBI, e regulamentada, de maneira inicial, pelo art. 1.783-A do CC.
Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.)
§ 1º Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 2º O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 3º Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 4º A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 5º Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores contra assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.)
(Vigência)
§ 6º Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 7º Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 8º Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e se for de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 9º A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.)
(Vigência)
§ 10 O apoiador pode solicitar ao juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz sobre a matéria. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência)
§ 11 Aplicam-se à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições referentes à prestação de contas na curatela. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015.) (Vigência) (Grifos nossos.)
Observe que a norma parte do reconhecimento de que toda pessoa com deficiência deve ter assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condições com as demais pessoas, em todos os aspectos da vida, e cria um instrumento processual eficaz para auxiliar e apoiar a pessoa com deficiência a tomar decisões, que dele necessite, a qual conta com um rito próprio ali previsto.
A tomada de decisão apoiada pode ser conceituada, portanto, como o processo por meio do qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.
O processo visa, assim, a garantir apoio à pessoa com deficiência em suas decisões sobre atos da vida civil, e assim ter os dados e informações necessários para o pleno exercício de seus direitos.
É aplicável, portanto, àquelas pessoas que podem manifestar vontade, mas necessitam de proteção.
Privilegia-se, desse modo, o espaço de escolha da pessoa, que pode constituir em torno de si uma rede de sujeitos baseada na confiança que neles tem, para auxiliá-lo nos atos da vida. Justamente o oposto do que podia antes acontecer, em algumas situações de curatela fixadas à revelia e contra os interesses da pessoa com transtornos mentais.
Como novo modelo, muito há que se discutir ainda a seu respeito, mas certamente não de modo suficiente no espaço desta unidade.
Para definição das áreas da vida em que contará com o suporte, a pessoa com deficiência e os seus apoiadores (auxiliadores) devem apresentar termo de que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo.
O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio. Será elaborado um laudo por equipe multidisciplinar e haverá oitiva do Ministério Público e oitiva pessoal do requerente, além dos apoiadores.
Art. 1.783-A. (...)
§ 3º Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio.
A tomada de decisão apoiada revela-se, então, como forma de supressão da deficiência, para o auxílio à pessoa com deficiência, representando um grande passo para a garantia da autonomia e a independência das pessoas com deficiência no exercício de sua capacidade.
Segundo a Lei nº 13.146/2015, a decisão tomada por pessoa apoiada em processo regular de tomada de decisão apoiada tem validade e efeitos perante terceiros, sem qualquer restrição, se estiver dentro dos limites do apoio.
O terceiro interessado com quem a pessoa apoiada mantenha relação de negócio pode, ainda, solicitar que os apoiadores também assinem o contrato ou o acordo que estiverem tratando. Caso determinado negócio jurídico venha a trazer risco ou prejuízo, e havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, o juiz, ouvido o Ministério Púbico, decidirá a questão.
Cumpre destacar que a tomada de decisão apoiada pode cessar a qualquer tempo, desde que a pessoa apoiada solicite o término do acordo assinado no processo. Além disso, o apoiador também pode requerer ao juiz a sua exclusão do processo, sobre a qual o juiz deverá se manifestar.
Reafirmando a amplitude do conceito de capacidade legal, o estatuto limitou a extensão dos efeitos da curatela à prática de atos de natureza patrimonial e negocial, conforme disposição do art. 85, de forma a assegurar a liberdade à pessoa com deficiência para tomar decisões e agir com autonomia em todas as demais áreas de sua vida.
Trata-se de uma opção garantista, restritiva.
Estatuto, art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.
§ 3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado. (Grifos nossos.)
Em casos de pessoa em situação de institucionalização, a curatela compartilhada mostrar-se-ia uma forma de divisão de tarefas e cuidados para com a pessoa titular de direitos.
Verifica-se que, com as mudanças trazidas pela lei, a curatela não atinge a prática de direitos relativos à sexualidade, ao próprio corpo, matrimônio, privacidade, educação, saúde, trabalho e voto, mas apenas os atos que envolvam a formalização de contratos, participação em negociações, venda ou compra de bens de qualquer natureza.
A ação de curatela (ainda prevista como ação de interdição em alguns artigos) é o procedimento específico por meio do qual decisão judicial reconhecerá, ou não, a incapacidade relativa do sujeito (no caso, pessoa com deficiência) – para aqueles que não puderem exprimir sua vontade, na esteira do art. 4º, III, do CC.
Importante destacar que, devido às alterações realizadas pela Lei Brasileira de Inclusão, as pessoas elencadas no art. 1.767 do CC (sujeitas à curatela) não são mais declaradas inaptas a todos os atos da vida civil, e, dessa maneira, não mais poderão ser nomeados curadores para geri-las por inteiro. Em assim sendo, sem respaldo na lei material, ficam sem sentido e caem por terra as disposições dos arts. 747 e seguintes do CPC, que dispõe sobre a ação de interdição (ANTONIO, 2018).
Vejamos a divisão tripartida da curatela, que dependerá do grau de comprometimento apurado no processo:
a) Curador como representante do relativamente incapaz para todos atos negociais da vida civil.
b) Curador como representante para alguns atos e mero assistente para outros (regime misto de curatela).
c) Tão somente assistente, na hipótese de o curatelado poder praticar todo e qualquer ato.
A sentença, com forte carga argumentativa, deve justificar a curatela para a pessoa com deficiência, de acordo com as suas individualidades, afinal, é medida extraordinária e proporcional às necessidades e circunstâncias do caso.
Nota-se que, com base na LBI, as pessoas com deficiência, ainda que em regime de curatela, têm garantido o exercício de sua capacidade legal em relação a todos os direitos elencados no § 1º do art. 85, independentemente de condicionantes. É possível, portanto, casar-se, escolher seus parceiros, decidir se relacionar sexualmente ou não, manifestar-se quanto a tratamentos médicos, doação de órgãos e quaisquer outros temas que a eles interessem.
Especificamente em relação ao casamento, previa o art. 1.548 do CC que:
Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:
I – pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil;
II – por infringência de impedimento.
Tendo por base o conceito ampliado de capacidade legal, o art. 114 do Estatuto da Pessoa com Deficiência revogou o inciso I do art. 1.548 do CC.
Logo, não poderá ser eivado de nulidade o casamento contraído por pessoa com deficiência. Essa revogação encontra amparo no inciso I do art. 6º do Estatuto, que determina que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para casar-se e constituir união estável.
Contudo, foi mantida a possibilidade de anulação do casamento contraído por pessoa incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento (art. 1.550, IV, do Código Civil).
A contradição é aparente, pois o estatuto considera válido o casamento realizado por pessoa com deficiência, contudo, essa questão não interfere na ressalva, ou seja, na anulação do casamento de pessoa incapaz de consentir ou manifestar a sua vontade.
Assim, privilegia-se a igualdade das pessoas com deficiência com as demais ao considerá-las capazes, em regra, para a vida civil.